quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O funcionário cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos 
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito 
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever? 
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço? 

Soletro velhas palavras generosas 
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música. 
São as palavras cruzadas do meu sonho 
palavras soterradas na prisão da minha vida 
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida 
num quarto só

António Ramos Rosa

(um poeta que nos deixou esta semana, mas a sua poesia persiste... actual!)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Se tem algo a dizer... diga... simplesmente deixe um comentário!